Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Artigo Geraldo Pinheiro: Vã filosofia? Uma defesa da ciência 3n5s4x

Sim, caro leitor, a Ciência é feita por humanos. E, como todo fenômeno humano, não é desprovida de falhas, algumas vezes graves

por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 7 de junho de 2025 às 11:30

Hamlet é uma peça escrita pelo grande dramaturgo William Shakespeare, que fala sobre uma conspiração no reino da Dinamarca. O pai do personagem principal é assassinado e o seu fantasma volta para alertar ao filho, Hamlet, sobre o ocorrido. Depois de Hamlet conversar com o fantasma (ou espectro) do próprio pai falecido, ele diz a Horácio (seu fiel amigo): “há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que pode sonhar tua filosofia”.

Ao longo dos séculos, essa declaração de Hamlet ficou famosa e tem sido muito utilizada para lembrar a incrível complexidade de tudo o que nos cerca. Quando se diz “no céu e na terra”, pretende-se dizer tudo o que o ser humano chama de “mundo”, toda a realidade. E, quando se diz “tua filosofia”, compreende-se que é a razão humana. Em outras palavras, dizer que “há mais coisas no céu e na terra do que pode sonhar tua filosofia” significa que a razão não é capaz de capturar toda a realidade; quer dizer que a realidade está além da compreensão humana natural.

A fala elaborada pelo personagem de Shakespeare (e sua interpretação também) é carregada de humildade, que é uma característica louvável. Porém, para o cientista – o grande investigador das coisas que há entre o céu e a terra –, a humildade, embora nunca deva deixar de estar presente nas suas ações e falas, deve ser acompanhada de muita curiosidade e ousadia. Na ciência, humildade em excesso atrapalha; o equilíbrio entre humildade e ousadia é uma característica irável.

Em 1835, o filósofo da ciência e fundador da filosofia positivista Augusto Comte proferiu a seguinte declaração: “as estrelas só estão íveis a nós por exploração visual à distância. Nunca poderemos por qualquer meio estudar sua composição química. Considero qualquer noção a respeito da verdadeira temperatura média de várias estrelas como para sempre negada a nós”. Temos aqui o exemplo de um
discurso eivado de humildade.

Entretanto, em 1925, a astrofísica Cecília Payne demonstrou que é possível, mesmo daqui da Terra, desvendarmos algum mistério do céu. Em sua tese de doutorado, utilizando a técnica que os físicos chamam de “espectroscopia”, descreveu como é possível conhecermos a composição química das estrelas a partir do estudo e observação da luz que elas emitem e que chega até nós.

Outros cientistas, utilizando-se de métodos semelhantes e de outras técnicas, conseguiram também medir a temperatura das estrelas. Se esses cientistas tivessem se conformado com a óbvia inalcançabilidade das estrelas, citada por Comte, nunca teriam desvendado esse mistério.

Este foi apenas um exemplo; mas a história da ciência é salpicada justamente por descobertas como essa em todas as áreas: na medicina, na física, na química, na astronomia, dentre outras. O cientista observa a Natureza e, se tiver a sensibilidade suficiente, se espanta ou se ira com algum fenômeno. Na sequência, perguntas surgem para explicar aquele fenômeno: por que, para que, como, em que condições aquele fenômeno vai acontecer? Existirá alguma lei que dite as regras para a existência daquele fenômeno?

Se entendermos esta lei, conseguiremos prever outros fatos ou compreender melhor outras questões? Esse cientista então se lançará à pesquisa e buscará métodos rigorosos para tentar responder a essas perguntas. Na maioria das vezes, não conseguirá. O trabalho do cientista é árduo e a Natureza não se mostra, como ela é, com facilidade. Em muitas vezes, cometerá erros os mais diversos, incluindo aqueles decorrentes da vaidade, do orgulho e até do preconceito. Os cientistas nem sempre terão o genuíno interesse pelo saber, pelo conhecer; algumas vezes, serão movidos por interesses financeiros.

Sim, caro leitor, a Ciência é feita por humanos. E, como todo fenômeno humano, não é desprovida de falhas, algumas vezes graves. Porém, como todos os humanos – seres dotados de defeitos e qualidades – assim também o é a Ciência. E, ao longo da sua história (a história moderna da Ciência data de 400 anos aproximadamente), já beneficiou em muito a humanidade.

Não podemos e não devemos prescindir dela. Muito pelo contrário, devemos investir nela, facilitar os caminhos dos cientistas e aumentar o rigor sobre os falsos cientistas (aqueles que usam a Ciência com má fé). Se tudo é cognoscível ao ser humano, é uma discussão que já vem de longa data, ando por filósofos importantes como Immanuel Kant. Talvez, nem tudo seja inteligível aos humanos; afinal, não somos perfeitos. Todavia, se algo for não-capturável pela inteligência humana nos dias de hoje, isso não significa que esse algo seja sobrenatural ou que para sempre esteja inalcançável à nossa compreensão.

Gostaria de dizer a Hamlet que, entre o céu e a terra, muitos mistérios já foram desvendados. E, embora seja bastante provável que não consigamos desvendar todos eles, o verdadeiro cientista sempre deverá incansavelmente tentar fazê-lo.

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